A Teoria dos Dois Evangelhos

      

Diogo.J.Soares_Biblia_teologia


A Teoria dos Dois Evangelhos, também conhecida como Teoria de Griesbach, é uma hipótese sobre a origem e a relação dos Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas). Proposta por Johann Jakob Griesbach, um estudioso bíblico alemão do final do século XVIII, essa teoria sugere que o Evangelho de Mateus foi escrito primeiro, seguido pelo Evangelho de Lucas, e que Marcos utilizou ambos como fontes, criando assim um resumo conciso dos eventos e ensinamentos encontrados nos dois evangelhos anteriores.

Essa teoria contrasta significativamente com a hipótese das duas fontes, que sugere que Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito e que tanto Mateus quanto Lucas usaram Marcos e uma fonte hipotética adicional, conhecida como “Q”, para compor seus evangelhos. A Teoria dos Dois Evangelhos propõe, portanto, uma sequência diferente de dependência literária, com Marcos servindo como um condensador dos relatos mais extensos de Mateus e Lucas, em vez de ser a fonte original.

Griesbach baseou sua teoria em uma análise detalhada das semelhanças e diferenças textuais entre os evangelhos sinópticos, argumentando que a ordem proposta pela sua teoria explica melhor as variações e os paralelismos observados nos textos. Embora não seja a teoria dominante entre os estudiosos modernos, a Teoria dos Dois Evangelhos continua a ser uma contribuição importante para o estudo crítico dos Evangelhos e oferece uma perspectiva alternativa sobre a complexa questão da inter-relação dos textos sinópticos.

Descrição da Teoria

Segundo a Teoria de Griesbach:

  Mateus foi o primeiro Evangelho escrito: Griesbach argumenta que Mateus foi o primeiro a ser composto, direcionado principalmente a uma audiência judaica, com ênfase na realização das profecias do Antigo Testamento.

 Lucas veio depois de Mateus: Lucas, conhecendo o Evangelho de Mateus, escreveu seu próprio relato para uma audiência gentílica, reorganizando e adicionando detalhes que considerava importantes.

 Marcos utilizou Mateus e Lucas: Por fim, o Evangelho de Marcos foi escrito utilizando ambos Mateus e Lucas como fontes, simplificando e combinando suas narrativas.



 Evidências para Mateus como o Primeiro Evangelho

 Há várias linhas de evidência e argumentos apresentados pelos defensores da Teoria de Griesbach para apoiar a prioridade de Mateus:

 Tradição Eclesiástica: A tradição da igreja primitiva frequentemente aponta Mateus como o primeiro Evangelho. Papias de Hierápolis, um escritor cristão do século II, afirmou que Mateus escreveu seu Evangelho “em hebraico” ou “na língua dos hebreus”, isso pode sugerir, que o apóstolo Mateus possa ter escrito um primeiro documento em aramaico/hebraico endereçado aos judeus de fala aramaica, e posteriormente escrito o mesmo evangelho em grego para judeus de fala grega, sugerimos tal suposição porque o evangelho que temos no Novo Testamento não é uma tradução, e sim que fora escrito em grego segundo a maioria dos estudiosos atuais.

 Conteúdo e Estrutura: Mateus contém muitos discursos longos de Jesus, como o Sermão da Montanha (Mateus 5-7), que são ausentes ou apresentados de forma mais resumida em Marcos. Isso sugere que Marcos pode ter simplificado os materiais encontrados em Mateus.

 Uso de Fontes: A teoria de que Lucas usou Mateus como uma fonte é suportada pela observação de que Lucas frequentemente segue a ordem narrativa de Mateus quando não segue Marcos. Isso é interpretado como Lucas conhecendo e respeitando a estrutura de Mateus enquanto adiciona seu próprio material.

 Estudos Linguísticos: Alguns estudiosos argumentam que certas características linguísticas e literárias em Marcos parecem ser simplificações ou condensações dos textos encontrados em Mateus, indicando que Marcos pode estar resumindo Mateus.

 Evidências Internas Judaicas do Evangelho de Mateus

 O Evangelho de Mateus é frequentemente considerado como o mais “judaico” dos Evangelhos sinópticos devido à sua ênfase em temas e práticas judaicas. Aqui estão algumas evidências internas que destacam essa característica e sugerem a antiguidade e a prioridade deste Evangelho:

 Uso de Títulos Judaicos para Jesus

 Mateus frequentemente usa títulos judaicos para Jesus, enfatizando sua relação com o judaísmo:

- Filho de Davi: Este título messiânico é usado repetidamente (Mateus 1:1, 9:27, 12:23, 15:22, 20:30-31), sublinhando a linha de descendência real de Jesus e sua legitimidade como o Messias esperado pelos judeus.

- Filho de Abraão: Na genealogia de Jesus (Mateus 1:1-17), Mateus traça a linhagem de Jesus até Abraão, enfatizando sua conexão com o patriarca do povo judeu.

 Cumprimento das Profecias do Antigo Testamento

 Mateus faz uso extensivo de citações do Antigo Testamento para mostrar que Jesus cumpre as profecias messiânicas:

 - Profecias Cumpridas: Mateus frequentemente introduz eventos na vida de Jesus com a frase “para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta” (Mateus 1:22-23, 2:15, 2:17-18, 2:23, 4:14-16, 8:17, 12:17-21, 13:35, 21:4-5, 27:9-10).

- Citações Diretas: Ele cita diretamente profetas como Isaías, Jeremias, e outros, interpretando a vida de Jesus como a realização das expectativas messiânicas judaicas (por exemplo, Isaías 7:14 em Mateus 1:23, Miquéias 5:2 em Mateus 2:6).

 Observância das Leis Judaicas

 Mateus enfatiza a observância da Lei Mosaica e as práticas judaicas:

 - Sermão da Montanha: Neste extenso discurso (Mateus 5-7), Jesus afirma que não veio abolir a Lei ou os Profetas, mas cumpri-los (Mateus 5:17-20). Ele exorta os discípulos a excederem a justiça dos escribas e fariseus.

- Rituais e Festas Judaicas: Mateus descreve Jesus observando festas judaicas e rituais (por exemplo, a celebração da Páscoa em Mateus 26:17-19).

 4.Genealogia Judaica

A genealogia de Jesus em Mateus 1:1-17 é organizada em três conjuntos de 14 gerações, seguindo uma estrutura judaica tradicional. Esta genealogia conecta Jesus diretamente a Abraão e Davi, figuras centrais na história judaica, sublinhando a legitimidade messiânica de Jesus.

   Termos e Costumes Judaicos

 Mateus utiliza terminologia e refere-se a costumes que seriam bem conhecidos dos leitores judeus:

 - Referências ao Templo: Mateus menciona o Templo de Jerusalém várias vezes e a importância do culto no Templo (Mateus 17:24-27, 21:12-14, 24:1-2).

- Uso do Aramaico e Hebraico: Mateus preserva expressões aramaicas e hebraicas, como “Raca” (Mateus 5:22) e “Eli, Eli, lama sabachthani?” (Mateus 27:46), mostrando uma familiaridade com a língua falada pelos judeus na Palestina.

  Compreensão do Contexto Político e Religioso Judaico

 Mateus demonstra uma profunda compreensão do contexto político e religioso do judaísmo do primeiro século:

 - Conflitos com os Fariseus e Saduceus: Mateus descreve diversos confrontos de Jesus com os líderes religiosos judeus, refletindo as tensões internas da sociedade judaica da época (Mateus 23).

- Ensino nas Sinagogas: Jesus é retratado ensinando nas sinagogas, que eram os centros da vida religiosa e comunitária judaica (Mateus 4:23, 9:35, 13:54).

 As evidências internas do Evangelho de Mateus indicam uma forte ênfase em temas e práticas judaicas, sugerindo que este Evangelho foi escrito para uma audiência judaica e muito cedo na história do cristianismo, possivelmente antes da destruição do Templo em 70 d.C. Essas características reforçam a hipótese de que Mateus pode ter sido o primeiro Evangelho escrito.

 Críticas à Teoria dos Dois Evangelhos

 A Teoria dos Dois Evangelhos não é universalmente aceita e enfrenta várias críticas:

 Hipótese das Duas Fontes: A teoria predominante entre os estudiosos modernos é a Hipótese das Duas Fontes, que sugere que Marcos foi o primeiro Evangelho escrito e que tanto Mateus quanto Lucas usaram Marcos e uma fonte adicional hipotética chamada “Q” do alemão ‘Quelle’ que significa fonte.

 Ausência de Evidências Diretas: Não há manuscritos ou documentos históricos diretos que comprovem inequivocamente que Marcos usou Mateus e Lucas como fontes.

 Complexidade Redacional: Alguns argumentam que é mais fácil explicar as diferenças entre Mateus, Marcos e Lucas assumindo que Marcos foi escrito primeiro e que os outros dois Evangelhos expandiram e complementaram Marcos, ao invés de uma teoria mais complexa onde Marcos sintetiza dois textos pré-existentes.


Problemas da Hipótese das Duas Fontes e a Plausibilidade da Teoria dos Dois Evangelhos

 A Hipótese das Duas Fontes (ou Hipótese dos Dois Documentos) é uma teoria amplamente aceita que tenta explicar a origem e a relação entre os Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas). Segundo essa hipótese, Marcos foi o primeiro Evangelho escrito, e Mateus e Lucas usaram Marcos e uma fonte adicional hipotética chamada “Q” para compor seus relatos. No entanto, essa hipótese enfrenta vários problemas. A Teoria dos Dois Evangelhos (Teoria de Griesbach) oferece uma alternativa que alguns estudiosos consideram mais consistente com as evidências internas dos Evangelhos sinópticos.

 Problemas da Hipótese das Duas Fontes

 1. Natureza Hipotética da Fonte Q:

- A Fonte Q é uma entidade teórica; não há manuscritos ou fragmentos antigos que comprovem sua existência. A ausência de qualquer evidência física direta para Q levanta questões sobre a sua realidade histórica (Farmer, 1964).

 2. Superposição e Duplicação de Material:

- A Hipótese das Duas Fontes deve explicar por que Mateus e Lucas, ao utilizarem Q, muitas vezes apresentam material semelhante de maneiras diferentes. Isso sugere uma revisão ou adaptação independente que não é sempre fácil de justificar.

 3. Dependência Lógica de Marcos:

- A suposição de que Mateus e Lucas usaram Marcos como a base principal é questionada por algumas evidências textuais que sugerem que, em várias passagens, Marcos parece ser uma versão mais condensada ou simplificada do material presente em Mateus e Lucas (Stanton, 1992).

 4. Diferenças de Ordem Narrativa:

- Mateus e Lucas divergem significativamente na ordem dos eventos e discursos em comparação com Marcos. A Hipótese das Duas Fontes deve explicar porque ambos os autores decidiram reorganizar Marcos de maneiras tão diferentes, algo que não é sempre convincente (Tuckett, 2005).

 Vantagens da Teoria dos Dois Evangelhos

 A Teoria dos Dois Evangelhos, também conhecida como Teoria de Griesbach, oferece uma abordagem diferente que resolve alguns dos problemas mencionados acima:

 1. Prioridade de Mateus:

- A teoria propõe que Mateus foi o primeiro Evangelho escrito. Isso é consistente com a tradição eclesiástica antiga, incluindo os escritos de Papias, que indicam que Mateus escreveu primeiro (Black, 2010).

 2. Lucas Utilizando Mateus:

- Segundo Griesbach, Lucas escreveu seu Evangelho conhecendo e utilizando Mateus. Isso explica as semelhanças e diferenças sem a necessidade de uma fonte hipotética adicional. Lucas reorganiza e adapta o material de Mateus para sua audiência gentílica (Farmer, 1964).

 3. Marcos como Resumidor:

- A teoria sugere que Marcos utilizou tanto Mateus quanto Lucas para compor seu Evangelho. Isso pode explicar por que Marcos parece ser uma versão mais concisa e muitas vezes omite detalhes encontrados em Mateus e Lucas. Marcos pode ser visto como um harmonizador, combinando e simplificando os dois relatos (Stanton, 1992).

 4. Consistência na Ordem Narrativa:

- A teoria dos dois Evangelhos argumenta que a ordem dos eventos em Mateus e Lucas pode ser mais naturalmente explicada se Lucas usou Mateus como base, ao invés de ambos dependentes de Marcos. Isso resolve alguns problemas de ordem narrativa encontrados na Hipótese das Duas Fontes (Tuckett, 2005).

 5. Evidências Internas Judaicas:

- A ênfase de Mateus em práticas e contextos judaicos, como discutido anteriormente, sugere uma composição primária destinada a uma audiência judaica. Isso é consistente com a ideia de que Mateus foi o primeiro a ser escrito, proporcionando um fundamento sólido para Lucas e Marcos desenvolverem seus relatos subsequentes (Keener, 1999; Davies & Allison, 1988-1997).

Examinando as evidências disponíveis a chamada Hipótese das Duas Fontes enfrenta desafios significativos, especialmente em relação à natureza hipotética da Fonte Q e as complexidades de dependência textual entre os Evangelhos sinóticos. A Teoria dos Dois Evangelhos, ou Teoria de Griesbach, oferece uma alternativa que é mais consistente com as tradições e evidências internas dos Evangelhos. Ao sugerir que Mateus foi o primeiro Evangelho escrito, seguido por Lucas e depois por Marcos, se soluciona várias inconsistências e fornece uma explicação coerente para as semelhanças e diferenças entre os textos sinóticos.

Conclusão

Portanto diante do exposto, concluímos que a Teoria dos Dois Evangelhos oferece uma perspectiva interessante e melhor sobre a origem e a interdependência dos Evangelhos sinóticos. Embora não seja a teoria dominante hoje, fornece uma base para a discussão acadêmica e incentiva a investigação contínua sobre como os textos dos Evangelhos foram compostos e transmitidos. A ideia de que Mateus foi o primeiro Evangelho a ser escrito continua a ser uma hipótese relevante e significativa dentro dos estudos bíblicos, e segundo a opinião do presente autor possui forte embasamento por evidências internas e reflete a rica diversidade de pensamento sobre as origens dos textos fundamentais do Novo Testamento.

 ____________________________________________________

Referências

BLACK, David Alan. Why Four Gospels? The Historical Origins of the Gospels. Kregel Publications, 2010.

DAVIES, W.D., e Dale C. Allison Jr. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to Saint Matthew. 3 vols. T&T Clark, 1988-1997.

FARMER, William R. The Synoptic Problem: A Critical Analysis. Macmillan, 1964.

KEENER, Craig S. A Commentary on the Gospel of Matthew. Eerdmans, 1999.

LUZ, Ulrich. Matthew 1-7: A Commentary. Hermeneia Series. Fortress Press, 2007.

MOO, Douglas. Matthew: The NIV Application Commentary. Zondervan, 1995.

STANTON, Graham N. A Gospel for a New People: Studies in Matthew. Westminster John Knox Press, 1992.

TUKTETT, Christopher. The Synoptic Problem: A Way Through the Maze. T&T Clark, 2005.

TASKER, R.V.G . Mateus, Introdução e Comentário. Edições Vida Nova, 2006

Diogo J. Soares

 

DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem