A História da Salvação: O Plano de Redenção Divino à Luz das Escrituras



A História da Salvação, também conhecida como História Sagrada ou História Redentiva, é uma das estruturas fundamentais da teologia cristã e bíblica. Esse conceito articula a narrativa unificada e progressiva da ação redentora de Deus na história humana, começando na Criação, passando pela Queda, e culminando na obra salvadora de Cristo, tendo sua consumação no futuro escatológico. Neste artigo buscaremos oferecer uma análise detalhada e expansiva desse conceito a partir das Escrituras, evidenciando sua natureza intrinsecamente bíblica e histórica. Além disso, criticaremos a visão existencialista de Rudolf Bultmann, que busca supostamente "desmitologizar" a narrativa bíblica, distorcendo seu entendimento integral como uma história objetiva de redenção.

1. O Conceito de História da Salvação

A História da Salvação refere-se ao modo como Deus revela progressivamente Sua vontade e propósito redentor ao longo da história humana. Desde a Criação em Gênesis até o Apocalipse, a Bíblia apresenta Deus como um ser que intervém na história para redimir a humanidade de sua condição caída. O conceito de história da salvação é, assim, uma narrativa teológica que descreve a atuação de Deus em três principais etapas: a Criação, a Queda e a Redenção.

1.1 Criação

A história da salvação começa com o relato da criação em Gênesis 1 e 2. Deus cria o mundo e tudo o que nele existe, declarando que era “muito bom” (Gn 1:31). O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26), para viver em comunhão com Ele e governar sobre a criação. A criação original é marcada por harmonia e paz (shalom), representando a ordem que Deus desejava para a humanidade e para o cosmos.

1.2 Queda

Contudo, em Gênesis 3, ocorre a ruptura dessa harmonia com a entrada do pecado no mundo. A queda do ser humano pela desobediência de Adão e Eva resulta na alienação de Deus, na corrupção da criação e na introdução da morte (Gn 3:1-19). A partir desse ponto, a história da humanidade é marcada por um crescente distanciamento de Deus, mas a promessa da redenção já começa a se manifestar, como visto na primeira promessa redentiva messiânica de Gênesis 3:15, o Protoevangelho.

1.3 Redenção e Promessa de Nova Criação

A história da salvação, no entanto, não termina com a queda. A Bíblia narra a progressiva revelação do plano redentor de Deus. Começando com Abraão (Gn 12:1-3), Deus escolhe um povo através do qual traria bênção a todas as nações. A aliança com Israel, mediada por Moisés e os profetas, e o estabelecimento de reis ungidos como Davi, são prefigurações do redentor final que viria em Jesus Cristo (2 Sm 7:12-16).

No Novo Testamento, o cumprimento dessa promessa se realiza na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Jesus é a culminação da História da Salvação, pois Ele é o Messias prometido, o qual inaugurou o Reino de Deus, oferecendo salvação ao mundo (Lc 24:44-47; Jo 1:29). A cruz e a ressurreição de Cristo marcam o ponto central da história redentiva, onde o pecado e a morte são derrotados e a reconciliação com Deus é oferecida a todos os que crêem (Rm 5:6-11).

Finalmente, a consumação da História da Salvação aponta para a segunda vinda de Cristo, o Juízo Final e a restauração de todas as coisas, onde Deus fará novas todas as coisas (Ap 21:1-5). Essa futura glorificação inclui o restabelecimento do shalom inicial, onde Deus habitará eternamente com Seu povo.

2. Interpretações Existencialistas de Rudolf Bultmann

Rudolf Karl Bultmann (1884-1976) um dos teólogos mais influentes do século XX, é conhecido por sua tentativa de supostamente "desmitologizar" as Escrituras. Sua premissa central é que os relatos bíblicos, especialmente os dos milagres e da ressurreição de Cristo, são "mitológicos" e não devem ser entendidos literalmente. Ele propõe uma abordagem existencialista que despoja os eventos bíblicos de seu valor histórico e os interpreta meramente como expressões simbólicas das experiências humanas universais.

2.1 A Crítica à "Desmitologização"

Bultmann argumenta que, em uma era moderna, influenciada pelo pensamento científico e racionalista, é impossível para uma pessoa contemporânea aceitar os relatos sobrenaturais da Bíblia, como a ressurreição de Jesus ou seus milagres, como fatos históricos. Para ele, a importância da mensagem cristã reside em sua capacidade de confrontar o indivíduo em sua existência e oferecer uma nova compreensão do ser, e não na veracidade histórica dos eventos narrados.

Entretanto, essa abordagem de Bultmann falha em vários pontos cruciais do pensamento teológico e bíblico. Primeiro, ao desconsiderar o caráter histórico dos eventos centrais da salvação, Bultmann desconstrói a própria base do evangelho. O cristianismo se fundamenta em eventos reais e históricos, como a encarnação e ressurreição de Cristo (1 Co 15:14-17). Sem a ressurreição literal e histórica de Cristo, o apóstolo Paulo afirma categoricamente que a fé cristã é inútil (1 Co 15:17). A insistência de Bultmann em uma abordagem existencialista subjetiva reduz a história da redenção a um simples mito, desconectando-a de qualquer realidade objetiva.

2.2 A Redução Existencialista

Outro problema crítico com a teologia de Bultmann é sua redução do evangelho a uma mensagem subjetiva, esvaziada de sua dimensão escatológica e redentora. Ao transformar o anúncio da salvação em um apelo existencialista, Bultmann remove a expectativa cristã de um fim redentor da história e do mundo. As Escrituras, porém, constantemente apontam para o clímax escatológico da História da Salvação, culminando na restauração da criação e na ressurreição dos mortos (Ap 21:1-5; Rm 8:19-23). A suposta "desmitologização" proposta por Bultmann descontextualiza o plano redentor de Deus e negligencia o fato de que o cristianismo não é uma mera filosofia de vida, mas uma proclamação de boas novas baseadas em eventos reais e divinamente orquestrados.

3. A Necessidade de uma História da Salvação Histórica e Objetiva

Ao contrário da visão de Bultmann, o entendimento bíblico-teológico da História da Salvação exige uma aceitação dos eventos históricos revelados nas Escrituras. Deus atua na história, e é por meio dela que Sua obra redentora é manifestada. A encarnação de Jesus Cristo é um evento histórico, testemunhado por homens e mulheres reais, e sua ressurreição foi proclamada como um fato histórico verificável (Lc 1:1-4; 1 Co 15:3-8). A redução do evangelho a uma experiência subjetiva e existencialista enfraquece a própria mensagem de esperança que o cristianismo oferece, ao cortar seu vínculo com a ação concreta de Deus no tempo e no espaço.

A História da Salvação, conforme as Escrituras, é essencialmente uma história de intervenção divina, onde o Deus transcendente age na história humana para trazer redenção, demonstrando que a fé cristã não é meramente uma "reflexão filosófica", mas uma fé enraizada em eventos factuais que transformam o cosmos.

Conclusão

A História da Salvação é um conceito fundamental para entender a estrutura da narrativa bíblica e a revelação de Deus. Trata-se de uma história concreta e objetiva que abrange desde a criação até a redenção final, com Cristo como seu centro. As tentativas de reinterpretar a história bíblica, como a proposta existencialista de Rudolf Bultmann, que visa "desmitologizar" os relatos, resultam na perda da essência do cristianismo, que depende da veracidade histórica dos eventos redentores.

Ao rejeitar essas interpretações modernas e subjetivas, reafirmamos que o evangelho é, de fato, uma proclamação de boas novas históricas, em que a ação salvífica de Deus através de Cristo se manifesta no tempo e no espaço, oferecendo esperança de vida eterna e de uma nova criação a todos os que creem.

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Referências 

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Diogo J. Soares




DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão.

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