A Natureza Literária de Gênesis: Relato Histórico ou Poesia Mítica?
Uma das principais discussões que cercam os primeiros capítulos de Gênesis está relacionada à sua forma literária. Muitos críticos contemporâneos sugerem de maneira equivocada que esses textos podem ser lidos como mitologia ou poesia, à semelhança de outras cosmogonias do Antigo Oriente Próximo, como o Enuma Elish (da Babilônia) ou o Atra-Hasis (um antigo mito sumério-acadiano). No entanto, uma análise mais cuidadosa de Gênesis revela uma distinção clara entre a forma como o autor bíblico trata os eventos da criação e a forma poética encontrada nessas narrativas mitológicas.
As cosmogonias míticas antigas geralmente empregam uma estrutura poética, com paralelismos, repetições, simbolismos e figuras mitológicas que são recorrentes e visam explicar a origem do universo de forma alegórica. No Enuma Elish, por exemplo, a criação é o resultado de um conflito entre divindades. Já em Gênesis, a narrativa é prosaica, direta e sem artifícios mitológicos. A criação do universo, segundo Gênesis 1, é descrita em uma ordem linear e factual, com Deus criando por meio de sua palavra em seis dias literais e descansando no sétimo. A ausência de simbolismo excessivo e a linguagem simples contrastam com as narrativas míticas, sugerindo uma intenção de registrar eventos reais e objetivos, não alegóricos.
Estudiosos como Gerhard Von Rad e Claus Westermann, embora reconheçam a singularidade de Gênesis em comparação com as narrativas do Antigo Oriente Próximo, mantêm diferentes abordagens quanto à natureza histórica dos eventos. No entanto, mesmo acadêmicos mais céticos reconhecem a distinção estilística entre Gênesis e os mitos antigos. Kenneth Kitchen, um egiptólogo e especialista em Antigo Oriente Próximo, argumenta que, embora haja pontos de contato entre Gênesis e outros textos antigos, Gênesis não se alinha ao gênero de poesia mítica, mas sim à narrativa histórica, com a intenção de fornecer uma descrição cronológica dos eventos da criação.
O Testemunho das Toledot em Gênesis
Uma característica fundamental que reforça a historicidade de Gênesis é o uso do termo Toledot, uma palavra hebraica que pode ser traduzida como História ou Genealogia. Esse termo aparece diversas vezes ao longo do livro de Gênesis, funcionando como um marcador literário para introduzir novas seções ou narrativas. As Toledot não apenas introduzem genealogias, mas também seções narrativas que descrevem eventos históricos específicos, como a criação do homem (Gênesis 2:4), a história de Noé (Gênesis 6:9) e as genealogias dos patriarcas (Gênesis 10:1, 11:10).
O uso dessas divisões reforça a ideia de que o autor de Gênesis está intencionalmente registrando uma série de eventos e pessoas reais. O termo "Toledot" conecta o conteúdo de Gênesis à ideia de uma continuidade histórica. Não se trata de uma coleção de mitos desconexos, mas de uma progressão histórica ordenada, que visa fornecer uma linha narrativa desde a criação até a formação do povo de Israel. Donald Wiseman, especialista em arqueologia bíblica, argumenta que a estrutura do livro de Gênesis segue uma tradição de registro histórico comum no Antigo Oriente Próximo, o que corrobora ainda mais sua natureza documental.
Gênesis e o Testemunho do Novo Testamento
A afirmação da historicidade de Gênesis é fortalecida pelo testemunho do Novo Testamento. Jesus Cristo e os apóstolos frequentemente fazem referência a eventos dos primeiros capítulos de Gênesis como fatos históricos. No Evangelho de Mateus, o Senhor Jesus, ao discutir questões sobre o casamento e o divórcio, faz referência direta à criação do homem e da mulher conforme registrado em Gênesis 1 e 2 (Mateus 19:4-6). Para Jesus, Adão e Eva não são figuras "míticas", mas os primeiros seres humanos criados por Deus.
Paulo, em suas epístolas, também trata Adão como uma figura histórica. Em Romanos 5:12-14, Paulo estabelece um paralelo entre Adão e Cristo, argumentando que, assim como a morte entrou no mundo através de um homem, a vida e a justificação vêm por meio de outro homem, Jesus Cristo. Essa analogia entre Adão e Cristo perde completamente seu sentido se Adão for uma figura mítica ou simbólica, reforçando a visão de que Paulo entendia os primeiros capítulos de Gênesis como relatos históricos.
Além disso, em Lucas 3:23-38, a genealogia do Senhor Jesus é traçada de volta até Adão, novamente enfatizando a continuidade histórica desde a criação até o próprio Cristo. Este tipo de abordagem genealógica, profundamente arraigada na tradição judaica e bíblica, seria impensável se os primeiros capítulos de Gênesis fossem considerados "míticos" ou alegóricos pelos autores do Novo Testamento.
Testemunho de Hebraístas e Acadêmicos
Diversos estudiosos, inclusive hebraístas e acadêmicos céticos, têm reconhecido a estrutura narrativa de Gênesis como distinta das tradições míticas do Oriente Próximo. John Sailhamer, especialista em Antigo Testamento, argumenta que a narrativa de Gênesis está firmemente ancorada em uma tradição histórica e legalista, com a intenção de registrar eventos factuais. Ele observa que a linguagem usada em Gênesis é intencionalmente diferente da linguagem poética ou simbólica encontrada em outros textos do Antigo Oriente Próximo.
Até mesmo críticos como James Barr, um dos estudiosos mais céticos sobre a historicidade literal de Gênesis, admitiu que os autores bíblicos, incluindo aqueles do Novo Testamento, entendiam o Gênesis como um relato histórico. Embora Barr não compartilhasse essa visão, sua admissão confirma que, do ponto de vista da teologia bíblica, Gênesis era visto historicamente por seus próprios autores.
Conclusão
A análise dos primeiros capítulos de Gênesis revela que, longe de serem meros mitos ou poesia simbólica, eles se apresentam como relatos históricos literais, embasados na historiografia teológica hebraica. Quando comparados com as cosmogonias do Antigo Oriente Próximo, a prosa clara e objetiva de Gênesis destaca-se como um relato que visa transmitir eventos reais e objetivos. A repetição das Toledot, o testemunho de Cristo e dos apóstolos, e o reconhecimento de estudiosos, tanto tradicionais quanto críticos, sustentam a ideia de que Gênesis foi escrito e interpretado como uma narrativa histórica factual. Dessa forma, a cosmovisão bíblica sobre as origens do mundo e da humanidade permanece enraizada na crença em um Deus criador que se revelou através de eventos históricos registrados com precisão.
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Referências
KITCHEN, Kenneth A. On the Reliability of the Old Testament. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 2003.
SAILHAMER, John H. Genesis Unbound: A Provocative New Look at the Creation Account. Sisters: Multnomah Books, 1996.
VON RAD, Gerhard. Genesis: A Commentary. Philadelphia: Westminster Press, 1961.
WESTERMANN, Claus. Genesis 1-11: A Commentary. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers, 1994.
WALTON, John H. The Lost World of Genesis One: Ancient Cosmology and the Origins Debate. Downers Grove: IVP Academic, 2009.
BARR, James. The Semantics of Biblical Language. London: Oxford University Press, 1961.
WALTON, John H. Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible. Grand Rapids: Baker Academic, 2006.
WISEMAN, Donald J. Clues to Creation in Genesis. London: Marshall, Morgan & Scott, 1977.
Diogo J. Soares