A relação entre fé e história sempre foi um tema de grande interesse e debate, especialmente no que diz respeito aos eventos centrais do cristianismo, como a ressurreição de Jesus. A questão central que permeia essa discussão é se eventos como a ressurreição podem ser considerados históricos, no sentido crítico da palavra, ou se pertencem a uma dimensão diferente de compreensão. Vários teólogos e historiadores têm abordado essa questão de formas distintas, oferecendo diferentes conceitos de história e métodos para abordar a interação entre fé e eventos históricos. Alguns estudiosos, como também o presente autor argumentam que a ressurreição de Cristo deve ser entendida como um evento que, embora tenha ocorrido no tempo e espaço, transcende a compreensão histórica crítica convencional. A distinção entre o que pode ser conhecido através da história crítica e o que é acessível apenas pela fé é central para essa discussão. No entanto, é importante considerar que, embora os métodos seculares de historiografia possam não ser capazes de explicar adequadamente a ressurreição, as evidências históricas ainda apontam para a realidade desse evento extraordinário. Isso leva a uma reflexão sobre como a fé e a história interagem de forma a proporcionar uma compreensão mais profunda dos eventos religiosos.
A Distinção Entre Historie e Geschichte
George Eldon Ladd teólogo evangélico e estudioso do Novo Testamento norte americano baseia-se na distinção proposta por outro teólogo alemão, Martin Kähler entre Historie e Geschichte. Historie é a história que pode ser reconstruída pelos métodos da historiografia crítica secular, operando dentro de um contexto naturalista e causal. Kähler, em sua obra Der sogenannte historische Jesus und der geschichtliche biblische Christus (O chamado Jesus histórico e o Cristo bíblico histórico), argumenta que a Historie é, por definição, uma reconstrução dos eventos do passado que exclui qualquer consideração de elementos sobrenaturais ou divinos[1].
Esse tipo de história é, portanto, limitado às causas e efeitos naturais, deixando de lado qualquer interferência divina na história. Por outro lado, Kähler propõe o conceito de Geschichte, uma história que, embora também tenha ocorrido no tempo e no espaço, não pode ser completamente compreendida ou explicada pela historiografia crítica. Geschichte reconhece a ação de Deus na história, e os eventos dessa natureza só podem ser totalmente apreendidos pela fé. Para Kähler, a ressurreição de Cristo é o exemplo máximo de Geschichte: um evento histórico real que transcende as categorias naturais e que não pode ser totalmente compreendido sem fé[2]. Ladd adota essa distinção, argumentando que, embora a ressurreição tenha ocorrido na história, ela pertence à esfera da Geschichte, pois seu caráter transcende a causalidade natural[3].
Ladd e a Crítica à Historiografia Moderna
O Professor Ladd segue a linha de pensamento de Kähler ao afirmar que a ressurreição de Cristo não pode ser totalmente explicada pela historiografia moderna. Ele argumenta que os métodos críticos modernos, ao se concentrarem exclusivamente na Historie, são incapazes de captar a verdadeira natureza de eventos como a ressurreição. A historiografia crítica, ao rejeitar a possibilidade de intervenção divina, falha em capturar a realidade completa de eventos supra-históricos como a ressurreição de Jesus[4]. Ladd critica a tentativa de reduzir a ressurreição a explicações naturais ou históricas simplificadas, como visões ou enganos dos discípulos. Para ele, essas explicações ignoram a natureza única e sobrenatural do evento. Seguindo Kähler, Ladd argumenta que, embora a ressurreição seja um evento que ocorreu no tempo e no espaço, seu caráter transcendente a coloca fora do escopo das explicações puramente históricas[5]. Aqui, ele está em acordo com a crítica de Karl Barth, que argumenta que eventos como a ressurreição são atos de Deus que não podem ser compreendidos pelos métodos de investigação histórica secular[6].
O Debate Entre Barth e Bultmann
A distinção entre Historie e Geschichte também é central para o debate entre Karl Barth e Rudolf Bultmann, dois dos mais influentes teólogos do século XX. Barth argumenta que a ressurreição de Jesus é um evento real e objetivo que ocorreu no tempo e no espaço, mas que, como ato direto de Deus, transcende a explicação histórica secular[7]. Para Barth, a ressurreição pertence à Geschichte, pois envolve a ação sobrenatural de Deus, que não pode ser captada pelos métodos da historiografia crítica[8]. Ele insiste que a ressurreição é um evento que realmente aconteceu, mas que não pode ser verificado pelas ferramentas seculares da crítica histórica. Bultmann, por outro lado, rejeita a noção de que eventos sobrenaturais possam ocorrer na história e argumenta que a ressurreição deve ser entendida de forma existencial. Para ele, a ressurreição de Jesus não foi um evento que aconteceu no tempo e no espaço, mas sim um evento que ocorre no encontro existencial entre o crente e a mensagem de Cristo (kerygma)[9].
Segundo Bultmann, a única maneira de compreender a ressurreição é dentro da experiência pessoal de fé, e não como um fato objetivo da história[10]. Ladd, no entanto, rejeita essa visão, afirmando que a ressurreição é, de fato, um evento objetivo que ocorreu no tempo e no espaço, mas cuja verdadeira natureza só pode ser compreendida pela fé[11].
A Ressurreição como Evento Supra-Histórico
Conforme enfatizado por Ladd, a ressurreição de Jesus é um evento que ocorreu no tempo e no espaço, mas que transcende a capacidade da historiografia crítica de explicá lo. Esse evento é supra-histórico, pois sua causa não é natural, mas divina[12]. A historiografia secular, ao se limitar à análise de causas naturais, não possui os meios para explicar adequadamente a ressurreição. No entanto, isso não significa que a ressurreição não possa ser percebida historicamente. As evidências históricas, como o testemunho dos apóstolos e a transformação radical dos primeiros seguidores de Jesus, apontam para a realidade de um evento extraordinário sem precedentes que ocorreu na história[13]. Embora a historiografia secular não consiga explicar plenamente esse evento, as evidências sugerem que a ressurreição foi um acontecimento real e objetivo, ainda que supra-histórico. Concordamos com o Professor Ladd ao afirmar que a ressurreição de Jesus é, de fato, supra-histórica. No entanto, também acredito que, mesmo dentro dos limites da historiografia secular, há evidências suficientes para reconhecer a realidade desse evento único. A ressurreição de Cristo não pode ser comparada a nenhum outro evento histórico, pois não há paralelos para sua natureza transcendental. Assim, mesmo que a historiografia secular não consiga explicá-la, a ressurreição permanece um evento histórico singular e objetivo.
Conclusão
Ladd oferece uma análise detalhada da interação entre fé e história, destacando a importância de reconhecer a distinção entre Historie e Geschichte. Seguindo Kähler e Barth, Ladd argumenta que eventos como a ressurreição de Cristo são reais e objetivos, mas transcendem os métodos de investigação histórica secular. Esses eventos pertencem à esfera da Geschichte, onde a fé oferece uma compreensão mais profunda e completa da ação de Deus na história. Embora a ressurreição de Cristo seja supra-histórica, as evidências históricas apontam para sua realidade, mesmo que a historiografia secular não tenha os meios para explicála totalmente.
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Notas
1. Kähler, Martin. Der sogenannte historische Jesus und der geschichtliche biblische Christus. Munique: Kaiser Verlag, 1956.
2. Ibid.
3. Ladd, George E. Faith and History. Bulletin of The Evangelical Theological Society, 1963.
4. Ibid.
5. Ibid.
6. Barth, Karl. Church Dogmatics. Edinburgh: T. & T. Clark, 1956.
7. Ibid.
8. Ibid.
9. Bultmann, Rudolf. Kerygma and Myth. London: SPCK, 1953.
10. Ibid. Ladd, George E. Faith and History.
11. Ibid.
12. Ibid.
13. Ibid.
Diogo J. Soares