A teologia cristã, fundamentada nos ensinamentos de Jesus Cristo e nos escritos apostólicos (Novo Testamento), historicamente sustentou um equilíbrio entre a soberania divina e a liberdade humana. No entanto, os escritos de Agostinho de Hipona (354–430) introduziram conceitos de predestinação absoluta que marcaram uma ruptura com a tradição anterior. Neste artigo examinaremos as influências pagãs que moldaram o pensamento de Agostinho, sua divergência em relação aos Pais da Igreja primitiva e a estranheza do determinismo fatalista em relação à fé cristã.
1. A Teologia Patrística e o Livre-Arbítrio
Os primeiros Pais da Igreja (séculos I-IV) rejeitaram explicitamente o determinismo em favor de uma visão libertária do livre-arbítrio. Justino Mártir (100–165), em um diálogo apologético, declarou:
“Nós, que fomos criados racionais, acreditamos que somos responsáveis por nossas escolhas, e não por um destino inevitável”¹.
Irineu de Lyon (130–202), reforçando a centralidade do livre-arbítrio, afirmou:
“Deus colocou o bem e o mal diante do homem, e ele pode escolher livremente”².
Tais afirmações eram consistentes com uma visão na qual a responsabilidade moral e o convite divino para a cooperação humana eram centrais. Essa visão foi amplamente aceita até que Agostinho, influenciado por filosofias pré-cristãs, introduziu uma abordagem diferente.
2. Agostinho e a Introdução do Determinismo
Agostinho, cuja juventude foi marcada pelo envolvimento com o maniqueísmo, uma religião dualista que enfatizava o determinismo, mais tarde adotou elementos do neoplatonismo antes de sua conversão ao cristianismo. Em suas obras tardias, especialmente durante o conflito com Pelágio, ele formulou uma doutrina de predestinação que contrastava com os ensinamentos dos primeiros pais. No tratado De Praedestinatione Sanctorum, Agostinho argumenta:
“Deus escolheu aqueles a quem Ele concederia a graça, não porque previu que eles creriam, mas para que pudessem crer”³.
Essa formulação representa uma ruptura com a ideia de que Deus concede graça com base na presciência da resposta humana, uma visão que dominava a teologia patrística.
3. A Influência Pagã no Pensamento de Agostinho
Ken Wilson, em sua pesquisa acadêmica, argumenta que Agostinho incorporou conceitos de determinismo derivados do estoicismo e do maniqueísmo em sua teologia. Ele observa:
“Os primeiros teólogos cristãos rejeitavam explicitamente o determinismo, mas Agostinho, ao tentar refutar Pelágio, recorreu às suas influências filosóficas pré-conversão”⁴.
Gerald Bonner corrobora essa análise ao observar que a ênfase de Agostinho na graça irresistível se afastou da visão cooperativa da graça sustentada pelos primeiros pais⁵. Essa abordagem inovadora reflete a tensão entre a tradição cristã primitiva e as filosofias fatalistas que influenciaram Agostinho.
4. A Estranheza do Determinismo Fatalista à Fé Cristã
Os Pais da Igreja primitiva rejeitaram vigorosamente o determinismo como incompatível com a fé cristã. Orígenes (185–254), por exemplo, enfatizou:
“A liberdade da vontade é essencial para a salvação, pois sem ela, o homem não seria moralmente responsável”⁶.
Da mesma forma, João Crisóstomo (347–407) afirmou que a graça de Deus não elimina a liberdade humana, mas a capacita:
“Deus nos chama, mas não nos força; cooperação é necessária”⁷.
Esses ensinamentos refletem uma tradição patrística que defendia a liberdade humana como um componente essencial da resposta ao amor divino, em contraste com a visão determinista introduzida por Agostinho.
5. Conclusão: Determinismo e a Fé Cristã
A análise histórica e teológica sugere e evidencia que o determinismo, como formulado por Agostinho, representa uma inovação influenciada por suas experiências filosóficas pré-conversão, que nos tempos modernos deram origem e base para o ensino calvinista da dupla predestinação. Embora sua doutrina tenha moldado profundamente o pensamento cristão ocidental, ela permanece estranha à tradição dos primeiros pais da Igreja. A ênfase patrística na liberdade e na cooperação com a graça divina oferece uma alternativa teológica que é mais coerente com a mensagem cristã apostólica original. Retomar essa perspectiva pode enriquecer a compreensão moderna da relação entre graça divina e liberdade humana.
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Notas
1. Mártir, Justino. Diálogo com Trifão, 43.
2. Lyon, Irineu de. Contra as Heresias, IV.37.1.
3. Hipona, Agostinho de. De Praedestinatione Sanctorum, 8.
4. Wilson, Ken. The Foundation of Augustinian-Calvinism. Oxford University Press, 2019.
5. Bonner, Gerald. St. Augustine of Hippo: Life and Controversies. Harper & Row, 1963.
6. Orígenes. De Principiis, III.1.8.
7. Crisóstomo, João. Homilias sobre o Evangelho de João, Homilia 27.
Diogo J. Soares