A figura de Jesus de Nazaré ocupa lugar central na história do pensamento religioso ocidental, sendo alvo de intensos debates acadêmicos nas últimas décadas. O seu ministério, bem como sua morte e a crença em sua ressurreição, levantam questões cruciais quanto à continuidade ou ruptura em relação à tradição do Judaísmo do Segundo Templo. Neste breve artigo proporemos uma análise crítica e analítica sobre como a mensagem e a prática de Jesus se relacionam com as expectativas messiânicas, a visão do Reino de Deus, e as concepções escatológicas predominantes no contexto judaico de sua época.
1. Continuidade e ruptura com o Judaísmo do Segundo Templo
Inicialmente, é preciso reconhecer que Jesus emerge de dentro do Judaísmo do Segundo Templo. Ele adere à Torá, à oração no Templo e à celebração das festas judaicas. Seus ensinamentos, como o amor a Deus e ao próximo, têm raízes profundas nas Escrituras Hebraicas (Dt 6; Lv 19). E. P. Sanders destaca que Jesus não procurava fundar uma nova religião, mas reformar o Judaísmo a partir de uma ética radical do Reino de Deus⁰. Segundo Paula Fredriksen, Jesus se via como um "profeta escatológico judaico, anunciando a iminente intervenção divina na história" ⁵. Por outro lado, seu ministério apresenta elementos de ruptura. A maneira como redefine o Reino, sua atitude frente à Lei e ao sistema de pureza, e sua prática de inclusão dos marginalizados, chocavam as estruturas religiosas da época.
2. O Reino de Deus: uma reinterpretação espiritual e ética
O conceito de Reino de Deus, central na pregação de Jesus, difere substancialmente das expectativas judaicas contemporâneas. Muitos grupos, como os zelotes e os essênios, esperavam um Messias guerreiro que expulsasse os romanos e restaurasse a soberania política de Israel. Os Salmos de Salomão (17-18) retratam um Messias davídico que purificaria Jerusalém da dominação estrangeira, enquanto a Regra da Guerra dos Manuscritos do Mar Morto (1QM) preconiza uma batalha escatológica contra os filhos das trevas. Jesus, por sua vez, proclama que o Reino já está entre os homens (Lc 17:21), e que sua manifestação se dá através de curas, perdão, justiça e amor ao próximo.
N. T. Wright argumenta que Jesus não nega o messianismo judaico, mas o redefine em termos de serviço, sofrimento e reconciliação, rejeitando o uso da força para instaurar o Reino¹. Como afirma Wright: "Jesus acreditava estar realizando a vontade de Israel, mas o fazia reinterpretando profundamente a esperança messiânica tradicional" ⁶. Dale C. Allison também enfatiza que Jesus era guiado por uma convicção apocalíptica, mas com um foco ético: "O que marca Jesus é seu chamado à radical transformação interior como sinal da proximidade de Deus" ⁷. O ensino do amor aos inimigos (Mt 5:44) e a rejeição do poder armado (Jo 18:36) exemplificam essa nova concepção do reinado de Deus.
3. A morte na cruz: escândalo teológico e histórico
A crucificação de Jesus representa um dos pontos de maior ruptura entre sua missão e a expectativa messiânica judaica. A Lei judaica considerava maldito todo aquele que fosse "pendurado no madeiro" (Dt 21:23), o que tornava impensável um Messias crucificado. Como Paulo declara, a cruz era "escândalo para os judeus" (1Co 1:23). Geza Vermes enfatiza que a morte de Jesus pelas mãos romanas, sob acusação de subversão política, foi vista como um fracasso messiânico por muitos de seus contemporâneos². Bart D. Ehrman afirma que "nenhum judeu esperaria que o Messias morresse da maneira mais humilhante possível"⁸. Contudo, é precisamente a partir desse fracasso aparente que surge a crença em uma nova compreensão do Messias: não como libertador político, mas como Servo Sofredor (Is 53), cuja morte tem valor redentor.
Essa releitura posterior, realizada pelos primeiros cristãos, se afasta significativamente das concepções messiânicas clássicas do Judaísmo. Como observa o estudioso judeu Daniel Boyarin, "o cristianismo não inventou a ideia de um Messias sofredor, mas radicalizou e universalizou esse conceito" ⁹.
4. A ressurreição individual: uma inovação escatológica
O Judaísmo do Segundo Templo possuía crenças variadas sobre a vida após a morte. Em geral, esperava-se uma ressurreição coletiva e escatológica no fim dos tempos, como descrito em Daniel 12. A afirmação cristã de que Jesus ressuscitou individualmente, no meio da história, era sem precedentes. James D. G. Dunn observa que essa crença foi o elemento distintivo que originou o cristianismo como um movimento à parte do Judaísmo³.
N. T. Wright defende que a ressurreição corporal de Jesus foi vista por seus seguidores como a inauguração concreta do Reino de Deus na história, validando sua missão e sua identidade messiânica de forma inesperada e transformadora⁴.
Conclusão
A mensagem e a prática de Jesus de Nazaré apresentam uma tensão fundamental entre continuidade e ruptura com o Judaísmo do Segundo Templo. Embora enraizado nas Escrituras e tradições judaicas, Jesus redefine de forma profunda os conceitos de Reino, Messias, redenção e escatologia. Sua morte vergonhosa e sua ressurreição proclamada como fato histórico no meio da História, constituem uma inversão teológica que, segundo os estudiosos aqui mencionados, não apenas confronta, mas também transcende as expectativas de sua época. A radicalidade de sua proposta e a resposta de seus seguidores dão origem a uma nova compreensão do divino e do destino humano, cujas repercussões ressoam até os dias atuais.
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Notas e Referências
⁰ SANDERS, E. P. Jesus and Judaism. Philadelphia: Fortress Press, 1985. p. 233-235.
¹ WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. Minneapolis: Fortress Press, 1996. p. 201-205.
² VERMES, Geza. Jesus the Jew: A Historian's Reading of the Gospels. London: SCM Press, 1973. p. 139-145.
³ DUNN, James D. G. The Partings of the Ways: Between Christianity and Judaism and Their Significance for the Character of Christianity. London: SCM Press, 1991. p. 52-54.
⁴ WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God. Minneapolis: Fortress Press, 2003. p. 710-715.
⁵ FREDRIKSEN, Paula. Jesus of Nazareth, King of the Jews. New York: Vintage, 2000. p. 112-115.
⁶ WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. Minneapolis: Fortress Press, 1996. p. 202.
⁷ ALLISON, Dale C. Constructing Jesus: Memory, Imagination, and History. Grand Rapids: Baker Academic, 2010. p. 87-89.
⁸ EHRMAN, Bart D. Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 126.
⁹ BOYARIN, Daniel. The Jewish Gospels: The Story of the Jewish Christ. New York: New Press, 2012. p. 53-55.