O período intertestamental — intervalo entre o último livro do Antigo Testamento (Malaquias) e os escritos do Novo Testamento — foi uma época de intensa produção literária judaica, refletida em obras conhecidas como literatura pseudoepígrafa. Esses escritos, atribuídos falsamente a personagens do passado bíblico, apresentam uma teologia rica em expectativas messiânicas e escatológicas. Contudo, quando comparadas ao Novo Testamento, especialmente aos evangelhos sinóticos, nota-se que a mensagem de Jesus emerge como uma proposta radical e sem precedentes no contexto do judaísmo do Segundo Templo. Neste estudo exploraremos comparativamente os temas centrais da escatologia e do Reino de Deus nesses dois corpos literários, destacando a originalidade e a peculiaridade da mensagem do Senhor Jesus, particularmente no que tange ao conceito de escatologia inaugurada.
1. O Reino de Deus na Literatura Pseudoepígrafa Judaica
Os textos pseudoepígrafos, como o Livro de Enoque, Apocalipse de Baruque e os Salmos de Salomão, revelam um anseio escatológico centrado em um Reino futuro que seria plenamente instaurado por intervenção divina, geralmente após um período de tribulação e julgamento dos ímpios¹. A vinda deste Reino está associada à figura messiânica — muitas vezes real e política — que restauraria Israel à sua glória passada e subjugaria as nações gentílicas². O Reino é, portanto, inteiramente escatológico e futuro: ele não está presente nem atuante na história antes da consumação final.
2. O Reino de Deus nos Evangelhos Sinóticos
Nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), a pregação de Jesus tem como núcleo a mensagem: "O Reino de Deus está próximo" (Marcos 1:15). No entanto, essa proximidade não é apenas uma expectativa futura, mas uma realidade já inaugurada na pessoa e obra de Jesus. O Reino de Deus, segundo Jesus, já está em operação na sua missão, nos seus milagres, exorcismos e ensino: “Se eu expulso demônios pelo dedo de Deus, então é chegado a vós o Reino de Deus” (Lucas 11:20). O teólogo George Eldon Ladd chamou essa dinâmica de escatologia inaugurada, ou seja, o Reino já começou com Jesus, mas sua consumação plena ainda está por vir³.
Essa visão rompe com o dualismo radical presente na literatura pseudoepígrafa entre o tempo presente maligno e o futuro redentor. Jesus introduz uma sobreposição de eras, em que o futuro invade o presente, e os sinais do Reino se manifestam em ações concretas e históricas. Como explica N. T. Wright, "Jesus acreditava que, através de sua própria missão, o Reino de Deus estava se realizando de forma decisiva, ainda que paradoxal e inesperada"⁴.
3. A Natureza Revolucionária da Escatologia Inaugurada
A escatologia inaugurada transforma a compreensão do tempo escatológico no judaísmo. O Novo Testamento apresenta o "já e ainda não", onde os fiéis vivem na tensão entre a inauguração do Reino e sua futura consumação. Essa tensão é inexistente na literatura pseudoepígrafa, na qual o Reino é esperado como um evento absoluto, cósmico e futuro⁵.
Além disso, a mensagem de Jesus desloca o foco da restauração nacional de Israel — tema recorrente nos pseudoepígrafos — para um Reino ético e espiritual, acessível a todos os povos por meio do arrependimento e da fé. Jesus redefine os parâmetros do messianismo judaico, não como um conquistador político, mas como o Servo Sofredor que vence através da cruz⁶.
4. A Universalização do Reino e a Missão de Jesus
A mensagem de Jesus também é peculiar em sua universalidade. Enquanto os pseudoepígrafos muitas vezes refletem uma visão exclusivista e étnica da salvação — centrada em Israel — o Reino proclamado por Jesus é inclusivo, voltado para judeus e gentios. Essa dimensão é particularmente visível em passagens como a parábola do banquete (Lucas 14), onde os marginalizados são convidados a participar do Reino.
A universalização do Reino, portanto, não apenas contrasta com os limites étnico-nacionais da literatura intertestamental, mas também revela o caráter profundamente missionário e renovador da mensagem de Jesus. Como observa Joachim Jeremias, Jesus não apenas anunciou a vinda do Reino, mas o encarnou em sua própria existência⁷.
Conclusão
Portanto, a análise comparativa entre a literatura pseudoepígrafa judaica e o Novo Testamento revela uma diferença teológica substancial, especialmente quanto à concepção do Reino de Deus. Enquanto os escritos intertestamentários aguardam um Reino exclusivamente futuro e nacional, Jesus proclama um Reino já presente, que transforma a realidade atual e transcende as barreiras étnicas. A escatologia inaugurada não apenas representa uma inovação teológica, mas estabelece a singularidade da mensagem cristã dentro do judaísmo do Segundo Templo. Ao inserir-se nas expectativas judaicas e simultaneamente subvertê-las, a mensagem de Jesus se apresenta como radicalmente nova, provocadora e revolucionária.
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Notas e Referências
1. CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha: Apocalyptic Literature and Testaments. Vol. 1. New York: Doubleday, 1983, p. 21-45.
2. COLLINS, John J. The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature. 3. ed. Grand Rapids: Eerdmans, 2016, p. 102-120.
3. LADD, George Eldon. The Presence of the Future: The Eschatology of Biblical Realism. Grand Rapids: Eerdmans, 1974, p. 121-150.
4. WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. Minneapolis: Fortress Press, 1996, p. 202-235.
5. VANDERKAM, James C. An Introduction to Early Judaism. Grand Rapids: Eerdmans, 2001, p. 142-160.
6. DUNN, James D. G. Jesus Remembered. Grand Rapids: Eerdmans, 2003, p. 612-635.
7. JEREMIAS, Joachim. New Testament Theology. London: SCM Press, 1971, p. 65-85.